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Full text of "Noticia historica e descriptiva da Sé Velha de Coimbra"

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Castro,  Augusto  Mendes 
Noticia  histórica  e 
Se  Velha  de  Coimbra 


Simões  de 
descriptiva  da 


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NOTICIA  IliSTORICA  E  DESCRIPTO 


DA 


SÉ  VELHA  UE  COIMBRA 


SÉ    VELHA    DE    COIMBRA 


NOTICIA 


HISTÓRICA  E  DESGRIPTIVA 


DA 


(COM  UM\  PHOTOGRAPHU) 


POR 


AUGUSTO  MENDES  SIMÕES  DE  CASTRO 

BACHAUEL  FOUMADO  EM  DIHEITO   PELA  UNIVERSIDADE    DE  COIMBRA 

SOGIO  EFFECTIVO  DO  INSTITUTO  DA  MESMA  CIDADE 

SÓCIO  CORRESPONDENTE  DA  REAL  ASSOCIAÇÃO  DOS  ARCHITECTOS  CIVIS 

E  ARCIIEOLOGOS  PORTUGUEZES. 


^>->-^^-^^^ 


COIMBRA 

IMPRENSA    ACADÉMICA 
1881 


A/5 

CcC3 


ACILIO  AUGUSTO  DA  FONSECA  PINTO 


JD. 


em  testemunho  de  cordial  amizade 


Augusto  Mendes  Simões  de  Ca^tro^ 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2011  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/noticiahistoricaOOcast 


A  SÈ  VELHA  I)E  COIMBRA 


Cct  edifico  prouve,  malgré  les  déí.mts 
de  Tensemblo,  qu'en  tout  temps  l'ar- 
chitecture  e  élé  caltivée  avec  succès  en 
Portugal. 

Les  Arts  kn  Portugal,  pelo  condo 
A.  Raczynski,  pag.  460. 


Qnasi  a  meia  encosta  do  monto  em  que  assenta 
Coimbra  levanta-se  o  majestoso  templo  da  sé  velha, 
um  dos  monumentos  mais  notáveis  do  Portugal. 

Antiguidade  veneranda,  aspecto  nobre  e  grandioso, 
bellezas  e  excelloncias  do  architeetura,  delicados  e 
primorosos  trabalhos  artísticos^  rostos  de  pessoas  il- 
lustres  que  encerra  este  edifício,  recordações  de  me- 
moráveis acontecimentos  a  elle  ligadas,  tudo  concorro 
para  fazer  celebro  e  importantíssima  esta  velha  ca- 
thedral. 


s 


A'cerca  da  origem  d'este  vetusto  momimento  têm 
corrido  diversas  o  encontradas  opiniões.  Vasta-^  intel- 
ligcncias,  ao  contemplarem  a  face  austera  da  velha 
sé  conimbricence,  têm  duvidado  se  aquellcs  fortes  e 
valentes  muros  foram  alevantados  pela  nobre  raça 
dos  godos,  ou  se  pelos  bellicosos  filhos  de  Allah.  Por 
muito  tempo  se  inculcou  esta  egreja  uma  mesquita 
de  mouros  convertida  ao  christianismo.  Para  esta 
ultima  hypothese  fazia  propender  a  muitos  uma  in- 
scripção  árabe,  descoberta  numa  pedra  da  fachada 
soptcntrional.  Algumas  memorias  manuscriptas  da- 
vam esta  sé  como  edificada  polo  bispo  D.  Gonçalo 
(1109 — 1128);  diversos  escriptores  a  attribuiam  ao 
conde  D.  Henrique. 

A  verdade  é  que  a  sé  velha  foi  erigida  pelos  cui- 
dados do  bispo  D.  ]\Iiguel,  reinando  el-rei  D.  AíFonso 
Henriques.  E'  facto  este  de  que  nao  se  pode  duvidar 
depois  que  se  tornou  conhecido  um  documento,  quo 
assim  nol-o  attesta,  exarado  no  Livro  Preto  (a).  Só 
elle  basta  para  invalidar  os  argumentos  dos  que  at- 
tribuiam ao  templo  que  hoje  subsiste  origens  mais 
remotas.  E,  quando  nao  fora  este  documento,  o  pro- 
blema ficava  resolvido  claramente  pelas  indicações 
do  cstylo  e  caracteres  architectonicos  do  edificio,  os 
quaes,  como  diz  muito  bem  o  sr.  dr.  Augusto  Filippe 
Simões,  equivalem  em  muitos  casos  a  uma  certidão, 
que,  sem  designar  o  anno,  declara  com  certeza  o  sé- 
culo em  que  o  monumento  foi  construido. 

Estudou  a  questão  por  esta  forma  o  mesmo  sr.  dr. 
Filippe  Sim5es  no  seu  precioso  livro  Reliquias  da 
Architcctura  Romano- Bysanti na  em  Portugal  e  par- 
ticularmente na  cidade  de  Coimbra,  Classificou  o  es- 
tylo  do  monumento  no  romano-bysantino  terciário, 

(a)  Pôde  ver-se  este  documento  na  Noticia  Histórica  do  Mos- 
teiro da  Vacariça,  por  Miguel  Rijjejro  de  Yascoíicellos,  P.  2.", 
pag.  77, 


usado  de  1100  a  1200;  conclusão  a  quo  foi  levado 
pela  perfeição  da  esculptura  nas  archivoltas,  nos  ca- 
piteis o  nos  ornatos  de  toda  a  espécie,  e  pela  compa- 
ração da  egreja  da  sé  velha  com  a  de  S.  Christovão, 
cuja  origem  era  conhecida.  «Em  ambas  a  plantas 
similhantes  correspondem  frontispicios  e  absides  simi- 
Ihantes.  Em  ambas  a  parede  sai  fora  nalgumas  par- 
tes, formando  uns  como  gigantes,  som  todavia  o  pa- 
recerem. Em  ambas  os  arcos  das  portas  principaes 
ficaram  separados  das  janellas  superiores  por  corni- 
jas. Em  ambas  se  guarnecem  as  paredes  de  ameias. 
Em  ambas,  finalmente,  se  nota  extrema  similhança 
nas  archivoltas  o  seus  ornatos,  nos  capiteis,  columnas, 
otc.  De  modo  que  a  todo  o  archeologo  parecerá  obvio 
terem  sido  construidos  estes  dois  templos  na  mesma 
epocha  e  pelo  mesmo  architccto,  ou  ao  menos  por  ar- 
tistas da  mesma  eschola»  (a). 

O  documento  do  Livro  Preto  a  que  acima  nos  re- 
ferimos foi  commentado  pelo  sr.  Rebello  da  Silva  era 
um  curioso  artigo  inserto  t\o  Panorama  de  1853,  do 
qual  passamos  a  fazer  alguns  extractos: 

«As  obras  começaram  com  donativos  dos  cónegos 
e  do  bispo.  Além  de  grossa  quantia  de  dinheiro,  o 
prelado  concorreu  com  uma  formosa  junta  de  bois, 
avaliada  em  doze  morabitinos  (pouco  mais  ou  menos 
19^200  réis).  O  architecto  Bernardo,  dez  annos  di- 
rector das  construcçoes,  recebeu  124  morabitinos 
(I98i!>400  réis)  comendo  á  mesa  do  bispo^  e  tendo 
annualmente  um  vestido  completo  na  valia  de  3  mo- 
rabitinos (4?{>800  réis).  Apezar  da  importância  (para 
a  epocha)  d 'esta  remuneração,  mestre  Bernardo  es- 
tava longe  de  ser  um  engenheiro  irreprehensivel.  Cor- 
rendo as  contas  das  despezas  nota-se  uma  verba  ap- 

(a)  Relíquias  da  Architectura  Romano- Bysantiiia  em  Portu- 
gal, pelo  sr.  (Ir.  Augusto  Fillipe  SiiBoes, 


iO 


pUcada  no  pagamento  do  outro  architecto,  Roberto 
de  Lisboa,  quatro  vezes  chamado  a  Coimbra  para 
emendar  a  obra,  e  sobre  tudo  para  se  incumbir  do 
trabalho  do  portal.  Este  antecessor  de  Miguel  Angelo 
trazia  comsigo  um  estado  de  quatro  moços  e  quatro 
jumentos,  que  o  bispo  pelo  contracto  estava  obrigado 
a  sustentar,  cousa  menos  fácil  do  que  pode  figurar- 
80.  Alem  da  cevada,  do  pão,  e  da  cai-ne  e  vinho  ne- 
cessários para  o  consumo  dos  homens  e  dos  asnos,  o 
mordomo  episcopal  pagou  a  mestre  Roberto  a  sorama 
avultadíssima,  visto  o  preço  do  dinheiro  naquello 
tempo,  de  1:Õ10  morabitinos  (2:41G,:>000  réis!).  O 
architecto  Bernardo,  que,  sob  a  tutela  do  mentor  do 
Lisboa,  dirigia  a  obra,  falleceu  durante  ella;  e  o  seu 
successor  mestre  Soeiro,  varão  monos  importante  ao 
que  parece,  não  obteve  as  honras  lucrativas  do  talher 
á  mesa  do  bispo,  dando-se-lhe  em  compensação  um 
vestido  por  anno,  um  quintal  de  vinho,  e  um  moio 
de  pão. 

«O  architecto  Roberto^  incumbido  do  desenho  e  la- 
vor do  portal  e  da  correcção  da  obra,  não  foi  o  único 
artista  de  fora  que  vciu  trabalhar  na  sé  de  Coimbra. 
Entre  outros  apparece  um  estrangeiro,  mestre  Ptolo- 
meus  (nome  byzantino),  como  auctor  do  famoso  retá- 
bulo dourado  do  frontal,  o  do  quadro  com  lavores  de 
ouro  da  Annunciação  da  Virgem.  Ptolomeus  tinha 
por  anno  lõO  morabitinos  (240í>000  réis),  e  o  ourives 
Félix,  que  foz  o  jarro  e  a  bacia  de  prata  para  o  ser- 
viço da  missa,  recebeu  pela  mão  de  obra  7  morabi- 
tinos (lliS200  réis).  Tanto  na  composição  e  ornato 
das  aras  e  columnas  do  altar  de  Santa  i\Iaria,  como 
no  pavimento  das  absides,  lagcado  do  mosaico  em 
xadrez,  dispcnderam-sc  40  morabitinos  (64:>000  réis\ 
A  cruz  de  ouro  tino,  dadiva  do  bispo,  era  a  maravi- 
lha do  templo.  Algumas  lascas  do  sancto  lenho,  em- 
butidas no  metal  precioso,  o  duas  laminas  tiradas  da 


11 


pedra  do  monto  Calvário,  ternavam-na  extremamente 
devota.  Em  uma  das  laminas,  ao  moio  da  cruz,  es- 
tava esculpida  com  grande  primor  a  figura  do  Christo 
crucificado;  e  do  outro  lado  a  da  Mator  Dolorosa.  A 
generosidade  do  bispo  nao  se  limitou  a  esta  bella  of- 
ferta.  Sào  innumeraveis  as  dadivas  de  vasos,  vesti- 
mentas, o  jóias  cora  que  enriqueceu  o  thesouro  da  ca- 
thedral,  {Subsidiando  a?  obras,  e  estimulando-as  de 
dentro  mesmo  da  cella  do  Sancta  Cruz,  aonde  se  ti- 
nha recolhido  padecendo  do  uma  enfermidade  aguda. 

«Nno  respiram  toda  a  singeleza  da  meia  edado  es- 
tas noticias  lançadas  por  um  cónego  no  registo  da  ca- 
thedral?  AqucUe  architecto  que  o  bispo  assentava  á 
sua  raesa^  e  ao  qual  dava  um  vestido  todos  os  annos, 
nâo  provará  a  estimação  das  artes?  A  vinda  de  mes- 
tre Roberto  para  emendar  as  obras  e  presidir  ao  la- 
vor do  portal,  sendo  ello  estrangeiro^  como  o  nome  in- 
dica, não  nos  explica  a  ar  de  parentesco  do  alguns 
monumentos  nossos  com  os  de  fora  do  mesmo  periodo? 
Naturalmente  o  architecto  chamado  de  Lisboa  perten- 
cia á  raça  do  norte,  tendo  vindo  em  qualquer  das 
frotas  de  cruzados,  que  entravam  frequentemente  no 
Tejo.  Se  a  conjectura  não  é  arriscada,  acha -se  mais 
do  que  provável  que  o  bispo,  desejando  que  a  nova  sé 
se  levantasse  egual  na  perfeição  e  na  grandeza  aos 
edifícios  religiosos  da  epocha,  não  poupou  sacrifícios 
para  corrigir  e  aformosear  a  sua  cathedral  pela  mão 
d'um  artista,  formado  na  eschola  que  produziu  as 
bellas  epopeias  de  pedra  da  França,  da  Inglaterra  e 
da  Allemanha.  Com  este,  mestre  Bernardo  podia 
aprender  sem  pejo;  e  Coimbra,  acabado  o  templo,  não 
seria  orgulhosa  exclamando:  «a  nenhum  inferior  no 
reino!» 

«De  feito  ha  na  sé  de  Coimbra  um  caracter  inde- 
lével. E'  a  magestade  sacerdotal  na  sua  expressão 
©levada,    Mesmo   depois    das   renovações    do   bispo 


12 


D.  Jorge  de  Almeida  em  1540  e  do  bispo  Affonso  do 
Castello  Branco  no  século  17.**,  o  sentimento  que  pre- 
domina ainda  é  o  da  arte  menos  florida  e  mais  crente 
do  século  da  fundação.  O  typo  austero  conserva  pura 
e  intacta  a  severa  belleza  apesar  dos  estragos  e  das 
reparações  succcssivas.  Rodeada  de  uma  coroa  de 
ameias,  fortificada  com  as  duas  torres  meias  guerrei- 
ras, meias  devotas,  a  antiga  cathcdral,  como  os  seus 
primeiros  pastores,  era  a  imagem  da  egrcja  militante. 
Esta  armadura  de  pedra  assemelhava-se  á  couraça 
envergada  sobre  as  vestes  clericaes  pelo  bispo  e  pelos 
cónegos  nos  dias  de  conflicto.  Por  íóra  estava  o  cas- 
tello; por  dentro  a  casa  de  Deus,  aonde  a  fé  aos  pés 
da  cruz  se  abraçava  com  a  esperança! 

«O  que  acabamos  de  expor  era  resumo  foi  textual- 
mente extrahido  do  Livro  Preto  de  Coimbra,  de  um 
documento  intitulado  Mimdatio  testamentomm  sive 
hereditatiim  sedis  S.  Marie  Colímbriensís.  Por  ello 
é  que  se  descobriu  aproximadamente  a  epocha  da  fun- 
dação da  sé,  e  as  principaes  circumstancias  da  sua 
origem  e  structura.  Collaça  da  monarchia,  e  filha  de 
Afíbnso  Henriques,  a  cathedral,  se  nào  remonta  aos 
godos  e  aos  árabes,  nasceu  era  um  período  sagrado 
pela  victoria,  e  heróico  pelos  prodígios  de  valor  e  do 
abnegação,  que  o  ennobrecem.  A  lenda  que  poetica- 
mente queria  levar  a  sé  a  uma  antiguidade  fabulosa 
expirou  diante  da  historia,  como  vacillava  já  perante 
o  raciocínio  critico.  Era  escabrosa  na  realidade  de 
concordar  a  remota  existência  attribuída  á  cathedral 
com  a  destruição  completa  de  Coimbra!  Só  um  mila- 
gre conseguiria,  que  reduzida  a  ruínas  a  cidade  es- 
capasse da  assolação  o  monumento  religioso  para  jus- 
tificar os  brazões  archeologicos,  inventariados  pelos 
seus  genealogistas». 

Puas  faces  çstão  patentes  d'este  antigo  templo.  An^- 


13 


bas  de  cantaria,  coroadas  de  ameias  e  tisnadas  dos 
séculos,  apresentam  uma  apparencia  singular,  que 
causa  sempre  no  visitante  que  as  contempla  uma  im- 
pressão grave  e  profunda. 

A  frente  principal,  que  lança  ao  poente,  o  que  of- 
ferece  de  mais  interessante  é  o  magestoso  pórtico  do 
mestre  Roberto.  Apesar  de  muito  carcomido  pela  diu- 
turnidade de  sete  séculos,  ainda  se  divisam  nelle  o  bom 
gosto  e  nobreza  da  sua  architectura.  E'  saliente  do 
resto  da  fachada,  e  formam-no  vários  arcos  de  cin- 
tro  pleno,  firmados  em  coluranas,  da  maior  parte  das 
quaes  só  restam  as  bases  e  capiteis.  Superiormente 
está  uma  tribuna  formada  também  por  columnas  e 
arcos  similhantos  na  traça  e  lavores  áquelles  sobre 
que  assenta.  A  ornamentação  das  bases,  fustes,  ca- 
piteis e  arcos,  tanto  da  porta  como  da  tribuna  e  a 
das  misulas  que  ficam  inferiores  a  esta,  é  muito  va- 
riada, correcta  e  de  apurado  gosto. 

Esta  fachada  já  não  se  conserva  intacta  segundo 
a  sua  traça  original.  Destoam  d^ella  as  duas  grandes 
janellas  que  se  vccm  aos  lados  do  pórtico,  mandadas 
rasgar  peio  bispo  D.  João  de  Mello,  que  governou  a 
diocese  de  Coimbra  desde  1684  até  1704:  (a).  Em 
1839  derribaram-se  algumas  ameias  d'esta  fachada 
e  acrescentou-se-lhe  um  campanário,  em  cuja  construc- 
ção  se  empregaram  pedras  do  próprio  edificio.  Não 
lhe  valeu  esta  precaução  para  que  se  não  distinga  do 
resto  da  frontaria.  E'  um  pejamento  ridículo  que 
adulterou  vergonhosamente  o  caracter  venerando  da 
fabrica  primitiva. 

A  fachada  septentrional  é  digna  de  ser  examinada 
com  toda  a  minuciosidade.   Logo  junto  da  esquina 

(a)  «Attendeu  muito  ao  adorno  da  sua  sé,  abriu-lhe  novas  ja- 
nellas, levantou  a  torre  grande,  que  ameaçava  ruina  e  ornou  o 
coro  e  capelias  com  ricas  armações  e  retábulos».  Fonseca,  Évora 
Olçriosa, 


u 


Occidental  attrae  a  attençao  do  observador  uma  arca 
de  pedra  com  lavores  e  letreiro,  levantada  do  chão 
a  pouco  mais  do  um  metro.  Foram  alli  depositadas 
as  cinzas  do  cônsul  D.  Sesnando,  governador  de  Coim- 
bra em  tempo  de  el-rei  D.  Fernando  Magno  de  Leào 
(1064)  e  as  de  um  sobrinho  seu.  D.  Sesnando  era 
filho  de  David,  rico  mosarabe  da  que  depois  se  de- 
nominou provincia  da  Beira,  senhor  de  Tentúgal  o 
de  outras  terras  no  território  de  Coimbra.  No  tempo 
de  Iben  Abbad  introduziu-se  na  curte  de  Sevilha,  o 
por  seus  talentos  e  bons  serviços  feitos  ao  príncipe 
sarraceno  chegara  a  occupar  o  logar  do  wasir  no 
diAvan,  isto  é,  de  ministro  ou  membro  no  supremo 
conselho  do  amir,  o  qual  o  distinguia  particularmente 
entre  os  seus  conselheiros.  D.  Sesnando  era  temido 
nas  guerras  com  os  inimigos  de  Iben  Abbad,  porque 
nas  empresas  que  dirigia  alcançava  sempre  resulta- 
dos prósperos.  Crê-se  que  alguma  oftensa  recebida 
dos  sarracenos  o  fez  abandonar  o  amir  de  Sevilha  o 
entrar  no  serviço  de  D.  Fernando  Magno  (a).  Foi 
D.  Sesnando  que  incitou  o  monarcha  leonez  a  prose- 
guir  para  este  lado  do  occidente  as  suas  brilhantes 
conquistas  com  a  tomada  de  Coimbra,  e  nesta  em- 
preza  foi  um  dos  capitães  que  mais  se  distinguiram 
por  assignalados  serviços.  D.  Fernando  Magno,  re- 
tirando-se  para  os  seus  estados,  recompensou  galhar- 
damente os  serviços  de  D.  Sesnando,  entregando- 
Ihe  Coimbra  com  o  seu  território  e  investindo-o  de 
plenários  poderes  para  exercer  o  supremo  governo, 
administrar  justiça,  repartir  e  dispor  como  lhe  aprou- 
vesse dos  terrenos  conquistados  (6). 

(a)  Alexandre  Herculano,  Hist.  de  Port.,  t.  1.°,  liv.  !.«> 

(b)  Tempere  illo  quo  Sorenissiinus  Rex  h.  Fernandus  ego  Côn- 
sul Sesuandus  accepi  ab  illo  pctestatem  (loliinbrie  et  oníniuin 
('ivitatuin  sive  (^astelloruni  que  sunt  in  oinni  circuita  ejus  sei- 
Ucet  ex  Lauieco  usque  ad  maré  per  aquani  ílununis  Uurii  usque 


Í5 

Conliece-so  uraa  infinidade  de  documentos  que  se 
referem  ao  governo  do  conde  D.  Sesnando  e  aos  po- 
deres por  clle  exercidos.  Nesses  documentos  apparece 
nomeado  com  esta  variedade  de  titulos:  alvazir^  co- 
meSy  consulj  procônsul,  domiims,  dux,  guhernatovy  im- 
perator^  prcases  (a).  D.  Sesnando  poz  particular  cui- 
dado nTio  S(}  em  conservar,  mas  em  alargar  os  seus  do- 
mínios, conquistando  aos  mouros  algumas  terras  impor- 
tantes. A  agricultura  foi  por  elle  consideravelmente 
desenvolvida.  Restaurou  e  fundou  varias  cgrejas;  reedi- 
ficou, fortaleceu  e  povoou  muitas  terras  e  castellos, 
entre  os  quaes  se  apontam  Monte-Mór-o-Velho,  Soure, 
Tentúgal,  Pendia  e  Arouce.  Fallecou  eai  'Zò  de  agosto 


ad  términos  quos  Christiani  ad  Auslruni  possident. . .  detlit  que 
predietus  Rom  niiclii  siipradictarii  terram  totaiii  ad  edilicanduin 
et  populaiiduin  et  íacieiíduin  ciiiicía  que  bene  visa  fuerint. . . — 
Docuuieiito  reproduzido  por  João  Pedro  Ribeiro  nàs  Dissertações 
Chronoloijicas,  t.  4.",  P.  1,^,  pag.  142. 

Sub  tríuo  et  jiejpetim  niaueutis  nomine  uno  palris  et  fdii  et 
spiritus  sancti.  In  era  mCii^  inlravit  rex  doainus  fredenandus 
cui  sit  beata  requies  iu  civitateni  coliuíbriain.  custodiat  ilbun  deus. 
et  prehendivit  eau)  de  trjbuj)us  bisniabelilaruni  et  lornavit  eam 
ad  gentcm  xpianoiuni  cum  adjutorio  onínipotentis  dei.  Deinde  iu 
diebus  illis  erexit  ipse  honorilicus  rex  predietus  principein  ibi 
níagnuin  duceni  et  consuleni  íidelem  domnuin  sisenanduin.  quem 
domiiuis  undique  exaltet.  super  ipsam  civitatem  ut  eam  popu- 
lasset  et  deíendisset  de  gente  paganorum.  ubi  sub  dei  adjutorio 
salvasset  gentem  xpianorum  et  deo  annuente  íecit.  Ipso  vero  ibi 
morante  precepit  illi  dare  suis  bominibus  vilias  ad  hereditandum 
et  domos  ad  edificaiidum.  et  vineas  ad  planlandum.  et  luissent 
ille  bereditates  et  libis  suis.  et  uxoiibus  et  nepotibus  super  il- 
bus  auctoritatem  et  liliis  et  neplis.— Doação,  feita  pelo  conde  D. 
Sesnando  ao  abbade  Pedro,  da  berdade  e  egreja  de  S.  Martinbo 
na  era  de  1118,  anuo  de  1080,  a  foi.  lo  áo Livro  Preto  da  Sede 
Coimbra  e  impressa  na  Noticia  Histórica  do  Mosteiro  da  Vaca- 
rica  de  Miguel  Ribeiro  de  Vasconcellos,  e  nas  Questões  Forenses 
do  sr.  João  Correia  Ayres  de  Cainpos,  n.»  1,  pag.  42. 

(a)  Muitos  d'esses  documentos  podem  ver-se  na  Monarchia 
Lusitana,  P.  3.'»  appendice;  no  Elucidário  de  Viterbo,  verbo  Al- 
vasir;  na  Memoria  IV 2)ara  a  Ilist.  da  Legislação  e  Costumes  de 


46 


de  1091  {a),  tendo  governado  27  annos  (ò).  O  tumulo 
de  D.  Sesnando  está  collocado,  como  dissemos,  jun- 
eto  da  esquina  occidental  da  fachada  do  norte  da  sé 
velha,  exposto  aos  estragos  do  rigor  das  estações. 
Para  sua  melhor  conservação  quizeramos  se  recolhes- 
se para  o  interior  do  templo.  A  inscripção  nelle  gra- 
vada diz  o  seguinte: 


AQUY  .  JAZ  .  HUN  .  QUE  .  KM  .  OUTRO  .  TENPO  .  FOY  .  GRANDE  .  BAROM 

SABEDOR  .  E  .  MUITO  .  ELOQUENTE  .  AVONDADO  E  .  RICO  .  E  .  AGORA 

HE  .  PEQUENA  .  CINZA  ENCARADA  .  EM  .  ESTE  MOIMENTO 

E  COM  .  EL  .  JAZ  .  HUUM  .  SEU  .  SOBRINHO  .  DOS  QUAES  .  HUN. 

ERA  .  JÁ  .  VELHO  .  E  .  OUTHO  .  MANCEBO  .  E  0  NOME  .  DO  .  TIO 

SESNANDO  .  E   PEDRO  .  AVIA  NOME  .  O  .  SOBRINHO. 


O  facto  de  serem  allemães  minúsculos  os  caracteres 


Portugal,  por  António  Caetano  do  Amaral;  nas  Dissertações  Chro- 
nologicas,  por  João  Pedro  Ribeiro;  no  Antiquário  Conimbricense, 
pelo  sr.  Manuel  da  Cruz  Pereira  Coutinho;  no  Tractado  sobre  as 
quotas  de  fructos  agrários  denominadas  rações,  pelo  mesmo  au- 
ctor;  na  Noticia  Histórica  do  Mosteiro  da  Vacariça,  por  Mifjuel 
Ribeiro  de  Vasconcellos;  nas  Questões  Forenses,  pelo  sr.  João 
Correia  Ayres  de  Campos,  etc. 

Os  documentos  redigidos  propriamente  por  D.  Sesnando  s5o 
notáveis  pelo  seu  eslylo.  Diz  o  sr.  Alexandre  Herculano  {Htst. 
de  Portug.,  t.  1.°,  nota  II):  «O  estylo  em  que  são  redi^ndos  os 
documentos  do  conde  Sesnando,  oirerece,  em  geral,  formulas  di- 
versas das  que  usavam  os  notários  christãos.  Alguns  d'esses  do- 
cumentos parecem  diplomas  árabes  escriptos  com  palavras  lati- 
nas. Não  seria,  até,  conjectura  demasiado  atrevida  suppor  que 
Sesnando  fora  mussulmano  antes  de  passar  ao  serviço  de  Fer- 
nando Magno.» 

(a)  Era  mcxxvhu.  Octauo  cal.  Septembris  obiit  Aluazil  donnus 
Sisnandus— C/íro«ícfl  Gotfiorum  nos  Portrgalice  Monvmenta  His- 
tórica, Scriptores,  pag.  10. 

(6)  Relativamente  a  D.  Sesnando,  além  dos  logares  citados, 
vide  um  artigo  no  Escudo  Christão  (jornal  que  se  publicou  em 
Lisboa  em  1847)  e  outro  artigo  do  sr.  R.  de  Gusmão  no  Archivo 
Pittoresco,  vol.  o.",  pag.  330. 


17 


d'esta  legenda  leva  a  crer  que  ella  seria  esculpida  desde 
a  epocha  d'el-rei  D.  João  i  até  á  de  D.  Manuel.  A 
syntaxe  e  o  estylo  da  inscripçao  parece  inculcarem 
que  ella  não  é  uma  composição  original,  mas  traduc- 
çâo  do  latim.  Por  baixo  do  tumulo  vê-se  na  parede 
uma  pequena  oxcavação  quadrangular,  talvez  outr' 
ora  preenchida  com  uma  lapide  em  que  estivesse  gra- 
vada a  inscripçao  primitiva  (a). 

Fallando  do  conde  D.  Sesnando,  diz  fr.  António 
Brandão: — «Dizem  que  está  sepultado  no  adro  da  sé 
de  Coimbra  em  um  dos  arcos  da  parede,  o  que  devia 
ser,  porque  naquelle  tempo  se  não  sepultavam  dentro 
das  egrejas,  nem  ainda  os  maiores  príncipes»  (ò). 
Conjecturamos  que  no  tempo  do  bispo  D.  Jorge  de 
Almeida  (1483-1543),  fazendo-se  importantes  obras 
na  sé  e  no  seu  adro,  seriam  removidas  as  cinzas  do 
conde  D.  Sesnando  e  então  collocadas  em  novo  tu- 
mulo. 

Dos  dois  pórticos  d'esta  fachada^  ambos  mandados 
fazer  pelo  referido  bispo  D.  Jorge,  torna-se  muito 
apreciável  o  maior,  que  é  de  excellente  fabrica  e  or- 
namentado segundo  o  estylo  da  renascença  com  grande 
profusão  de  miudezas  e  lavores  de  notável  primor  e 
elegância.  E'  obra  do  grande  architecto  João  de  Cas- 
tilho, que  tão  celebre  se  tornou  pelo  esmero  e  bom 
gosto  dos  seus  trabalhos.  Assim  o  aííirma  o  sr.  Fran- 
cisco Adolpho  de  Varnhagen,  que  fallando  deste  ar- 
tista insigne  diz  o  seguinte:  «Também  esteve  em  Coim- 
bra, pois  sem  duvida  de  seu  tempo  e  suas  são  as  por- 
tas excrescentes  de  pedra  de  Ançã  da  sé  velha.  Os 
bustos  em  medalhões,  os  arabescos  ao  divino,  os  ni- 
chos de  concha,  os  balaustres,  os  vasos,  as  pilastras 
estriadas,  a  par  de  um  arremedo  das  renascentes  or- 

(a)  Vide  Dissertações  Chronologicas,  por  João  Pedro  Ribeiro, 
t.  !.•,  documento  n.»  1,  nota  1. 
(6)  Monarchia  Lusitana,  P.  3.^,  liv.  8.»,  cap.  4.« 


18 


dens  dórica  e  corintliia,  como  tudo  ahi  se  vê,  nao 
podem  deixar  de  ser  obra  de  Castilho,  já  meio  con- 
vertido ás  doutrinas  de  Vitruvio  (a)». 

Um  outro  objecto  assas  notável,  e  de  grande  in- 
teresse para  antiquários,  existe  nesta  fachada.  E' 
uma  inscripção  em  caracteres  arábicos.  Este  monu- 
mento epigraphico  era  um  dos  argumentos  em  que 
muitos  se  fundamentavam  para  asseverar  que  o  tem- 
plo da  sé  velha  fura  originariamente  uma  mesquita 
de  mouros;  a  inscripção,  porém,  está  incompleta,  e  é 
apenas  fragmento  de  uma  legenda  que  devia  constar 
de  mais  palavras,  como  verificou  o  distincto  arabista 
hespanhol,  o  sr.  D.  Pascual  de  Gayangos,  o  qual  por 
pedido  do  sr.  dr.  Filippe  Simões  a  estudou  e  tradu- 
ziu. A  traducção  do  sr.  Gayangos  é  a  seguinte: 

.  . .  edificou-o  com  solidez  Ahmed  Ben  Ismael  por 
mandado  de. . .  (h). 

Tudo  leva  a  crer  que  a  pedra  em  que  se  acham  os 
caracteres  arábicos  pertencera  a  outro  edifício,  cujos 
materiaes  foram  aproveitados  para  a  fabrica  da  sé. 

O  zimbório  que  se  levanta  sobre  o  cruzeiro,  em 
substituição  do  ura  coruchéu  da  primitiva  fundação, 
foi  mandado  construir  pelo  bispo  D.  António  de  Vas- 
concellos  e  Sousa  no  século  xviif.  E'  outra  obra  que 
destoa  do  estylo  do  monumento. 

{a)  Noticia  Histórica  e  Descriptiva  do  Mosteiro  de  Belém. 

{h)  «A  primeira  palavra  não  a  pôde  decifrar  o  sr.  Gayangos, 
porém  suppõe  que  signiíicará  parede,  muro  de  reforço  ou  obra 
de  estructura  semelhante.  TamLeni  não  chegou  a  ler  o 'final.  Além 
de  estar  gasta  do  tempo  a  pedra,  a  inscripção,  conforme  entende 
o  sr.  Gayangos,  não  está  completa,  mas  é  fragmento  de  outra  que 
deveria  constar  de  duas  ou  mais  regras,  o  que  fazendo  nuiilo  thf- 
íicil  a  leitura,  levou  o  traductor  a  declarar  que  não  tem  grande 
confiança  na  traducção.»  Reliqiiias  da  Architectura  Romaiio-By- 
santina,  pelo  sr.  dr*  A.  Filippe  Simões.  Nesta  obra  se  pode  ver 
o  fac- símile  da  inscripção. 


9 


O  interior  do  tora  pio  nao  desdiz  da  apparoncla 
nobre  e  veneranda  da  sua  parte  externa,  com  quanto 
grandes  alterações,  cfíectuadas  em  varias  epochas, 
lho  tenham  prejudicado  a  feição  primitiva.  A  sua  ar- 
chitectura  simples  mas  magostosa,  o  seu  aspecto  de 
ancianidade,  uma  claridade  moderada,  tão  propicia 
aos  actos  e  sentimentos  piedosos,  tudo  nos  enche  a 
alma,  como  disso  Garrett,  de  um  certo  não-sei-que 
entro  goso,  respeito,  devoção,  melancolia  e  suavidade, 
que  podemos  aili  estar  horas  esquecidas  sem  nos  lem- 
brar nem  importar  mais  nada  (a). 

O  templo  é  dividido  em  tros  naves,  a  cada  uma 
das  quaes  corresponde  na  frente,  passado  o  cruzeiro, 
uma  capoUa.  Ao  longo  das  naves  lateraes  veem-se 
algumas  capellas  e  altares  adornadas  de  obra  de  ta- 
lha do  século  XVII. 

O  coro^  construido  de  madeira  de  carvalho,  fica 
superior  á  entrada  no  primeiro  terço  da  nave  central 
e  a  meia  altura  d'olla.  E'  obra  do  bispo  D.  Affonso 
de  Castello  Branco  (158Õ-1615),  cujas  armas,  compos- 
tas de  um  leão  rompente,  se  vêem  no  meio  do  tecto. 

São  muitos  e  importantes  os  monumentos,  inscri- 
pçoes  notáveis  e  objectos  d'arte  dignos  de  observa- 
ção que  se  encontram  por  todo  o  templo.  Logo  á  en- 
trada principal  está  o  mais  antigo  monumento  epi- 
graphico  do  interior;  do  edifício.  E'  uma  inscripção 
do  anno  de  1290  gravada  numa  pedra  embebida  na 
parede  por  traz  da  meia  porta,  ao  lado  direito  de 
quem  entra.  Diz  o  seguinte: 

ERA.  MILLESIMA.  TRECKNTKSIMA  VIGÉSIMA  OGTAVA  SEXTO.  NONAS. 
OCTOBRIS.  OBIIT.    DONNUS.  PASCHASIUS.   NUNIS.  ARCIIIDIACHONUS.  DE 
SENA   IN.  ECCLESIA.    COLIMBRIENSI.   ET.    JACET   INTUS.  IN.  ECCLESiA. 
COLIMBRIE.    CIRCA.   PAVIMENTUM.   PORTE.    OCCIDENTALIS   IPSIUS.  EG- 
CLESIE  CUJUS.  ANIMA.  REQUIESGAT.  IN.  PAGE.  AMEN.  (6). 

(a)  Obras  de  Garrett,  Lyrica,  t.  16."  da  3.^  edição. 

(6)  No  Antiquário  Conimbricense,  n.**  2,  vem  o  fac-simile  d'esta 


20 


Próximo  da  cornija  da  primeira  columna  da  nave 
do  lado  da  epistola,  e  juncto  do  arco  da  primeira 
capoUa  está  outra  lapide  com  esta  legenda: 

TERTIO.  DIE.  MENSIS.  SETEMBRIS.  DE.  ERA  MILLESIMA.  TRECENTESIMA 
OCTOGÉSIMA.  TERTIA.  OBriT.  DOMNUS.  ANDREAS.  JOHANIS.  CAN- 
TOR. HUJUS.  ECCLESIE.  NEPOS.  DOMNI,  ACCURSII.  ET 
DOMNI.  GUILHELMI.  MILITUM.  MAGISTROS.  IX.  JURE.  CA- 
NÓNICO. ET.  CIVILI.  CUJUS.  ANIMA.  REQUIESCAT.  IN  PACE.  (a). 

Os  bellos  azulejos  que  revestem  as  columnas  e  parte 
das  paredes  do  templo,  são  dignos  de  reparo  pelos 
seus  lavores  e  desenhos  no  estylo  árabe  e  pelo  seu 
brilhante  esmalte.  Mandou-os  vir  de  Sevilha  o  bispo 
D.  Jorge  d'Almeida  (b). 

Nos  altares  lateraes  encontram-se  algumas  pintu- 
ras, duas  das  quaes  têm  sido  elogiadas  por  apreciado- 
res competentes.  Uma  d'estas  é  a  imagem  da  rainha 
Santa  Isabel,  situada  em  a  nave  do  lado  da  epistola, 
acerca  da  qual  diz  o  seguinte  o  conde  A.  Raczynski: 

«Parmi  les  quatro  grandes  peintures  qu'on  voit  dans 
la  cathédrale,  la  plus  interessante,  sans  être  pour  cela 
bien  supérieure  à  toutes  les  autres,  est  le  portrait  de 
la  sainte  reine  Isabelle;  il  est  de  grandeur  naturelle, 
et  incontestableraent  d'une  époque  bien  postérieure  à 

inscripção,  que  reproduzimos  sem  abreviaturas.  Ahi  e  no  Dis- 
curso a  favor  do  Cabido,  Prova  n."  60,  vôni  algumas  noticias, 
mas  pouco  importantes,  relativas  a  Paschasio  ?sunes. 

(a)  A  inscripção  original  tem  muitas  abreviaturas.  "So  Antiquário 
Conimbricense,  n.°  4,  se  encontra  o  fac-simile  d'esta  legenda  e 
algumas  noticias,  aliás  pouco  interessantes,  relativas  a  André  Jo3o. 

(6)  «M.  W.  H.  Hairisson  dit  que  son  revétement  de  tuiles 
émaillées  (azidejos),  qu'il  croit  fahriquées  en  Flandres,  fait  un  cu- 
rieux  eífet.» — Portugal,  por  Ferdinand  Denis,  pag.  388.  De  um 
manuscripto  existente  na  bibliotlieca  nacional  de  Lisboa,  intitu- 
lado— Extractos  vários  tirados  do  Real  Archivo  da  Torre  do  Tom- 
bo, relativos  á  Historia  Ecclesiastica  do  Bispado  de  Coimbra, 
consta  que  o  bispo  mandou  vir  os  azulejos  de  Sevilha  e  não  de 
Flandres,  como  julgou  Harrisson. 


^21 


celle  ou  elle  vivait  (1280).  Ce  portrait  n'a  certaine- 
ment  pas  deux  cents  ans»  (a). 

A  outra,  que  fica  em  a  nave  do  lado  do  evangelho, 
representa  Sancta  Úrsula,  e  mereceu  os  gabos  de  Mr. 
Chavignaud,  que  disse  d'ella:  «Cest  la  première  fois 
que  je  rencontre  en  Portugal  le  portrait  de  notre  sainte 
martyre,  et  cette  fois  ce  n'est  pas  une  peinture  fla- 
mande,  mais  bien  Foeuvre  d'un  peintre  portugais.  La 
sainte  martyre,  dans  toute  la  splendeur  de  la  beauté 
morale  et  physiquo,  occupe  le  centre  du  tableau.  Ses 
yeux,  ou  brillent  la  foi  et  Texaltation  d'une  belle  ame 
qui  s'est  donnée  volontairement  à  Dieu,  sont  leves 
vers  les  cieux.  EUe  tient  dans  la  main  droite  une 
harape  au  sommet  de  laquelle  flotte  la  blanche  ban- 
nière  sur  laquelle  se  lit  Christus  et  qu'elle  brandit 
majestueuseraent.  Les  compagnes  sont  martyrisées  à 
ses  pieds,  tandis  que  de  petits  groups  d'anges,  répan- 
dus  dans  un  ciei  transparent,  jettent  des  fleurs  aux 
saintes  filies.  Dans  le  fond  du  tableau  on  voit  le  Rhin 
majestueux,  ser  lequel  flottent  les  barques  delaissées 
sur  le  rivage.  Ce  tableau  parait  être  du  commence- 
ment  du  xvi.^  siècle.  II  m'a  vivement  interesse»  (b). 

No  topo  do  cruzeiro  do  lado  do  evangelho,  debaixo 
de  um  arco  aberto  na  parede,  está  um  antigo  monu- 
mento, em  cuja  parte  superior  se  vê  estendido  o  vulto 
de  um  prelado  com  mitra  na  cabeça  e  as  mãos  cru- 
zadas sobre  o  peito.  E'  o  tumulo  de  um  illustre  bispo 
de  Coimbra,  D.  Egas  Fafes,  descendente  por  linha 


(a)  Les  Arts  en  Portugal. 

(6)  Jornal  do  Porto,  n.»  105  de  10  de  maio  de  1866.  M.  Cha- 
vignaud accrescenta  ainda:  «M.  le  comle  de  Raczynskia  vu  dans 
la  sainte  Ursule  le  portrait  de  la  reine  Isabel.  11  a  commis  une 
legère  erreur  qu'il  lui  será  facile  de  rectiíier  dans  la  nouvelle 
édition  q'il  doit  donner  des  Arts  en  Portugal».  Em  erro  caiu  Mr. 
Chavignaud,  pois  na  sé  velha  existe  tamliem,  como  dissemos,  a 
pintura  que  representa  Sancta  Isabel. 


0::> 


masculina  do  famoso  alferes  do  condo  D.  Henrique, 
D.  Fafes  Luy  (a).  Foi  assumpto  ao  episcopado  do 
Coimbra  no  íim  do  anno  de  1246.  Negócios  impor- 
tantes (b)  o  levaram  a  Roma  em  1266,  e  ahi  alcan- 
çou a  prelazia  compostellana.  De  caminho  para  a  sua 
nova  diocese,  falleceu  em  Montpellier  no  dia  9  de 
março  de  1268  (c).  A  sua  fymilia  lhe  trouxe  o  cadá- 
ver para  a  sé  de  Coimbra. 

Juncto  do  tumulo  do  bispo  D.  Egas  está  outro  do 
mesmo  gosto,  onde  repousam  as  cinzas  de  D.  Ve- 
taça,  infanta  da  Grécia.  Esta  illustre  dama,  por  parte 
de  sua  mãe  Irene,  era  neta  do  imperador  da  Grécia 
Theodoro  Lascaro,  o  menor.  A  esto  imperador  suc- 
cedeu  seu  filho  João,  irmão  de  Irene,  o  qual  era  do 
poucos  annos  quando  seu  pae  morreu.  Miguel  Faleo- 
logo  usurpou-lhe  o  império,  que  andava  na  casa  e 
linhagem  dos  Lascares,  e  para  mais  se  assegurar  na 
Bua  posse  fez  arrancar  os  olhos  ao  desditoso  moço  (d), 

Irene  foi  dada  em  casamento  pelo  perseguidor  do 
Bua  familia  ao  conde  Willelmo  de  Vintemilla,  geno- 
vez,  e  com  elle  veiu  residir  na  sua  casa  de  Génova  (e). 
D'este  casamento  houve,  além  d'outros  filhos,  a  D.  Ve- 
taça.  Irene,  depois  de  enviuvar,  estabeleceu-se  em  Ara- 
gão, para  onde  trouxe  comsigo  sua  filha.  Nesta  corte 
foi  I).  Yetaça  muito  acceita  da  familia  real,  tendo  com 
ella  grande  privança.  Na  infanta  D.  Isabel,  filha  de 
D.  Pedro  iii,  encontrou  uma  amiga  predilecta  e  pro- 

(fl)  Vide  o  Nobiliário  attribiiido  ao  conde  D.  Pedro,  tit.  39. 
{h)  Vide  Historia  de  Portugal,  por  Alexandre  Herculano. 

(c)  Vide  Agiologio  Lusitano,  t.  2,  com.  ao  dia  9  de  março, 
e  a  Historia  Seráfica,  por  fr.  Manuel  da  Esperança,  P.  1,  Uv. 
15,  cap.  40,  etc. 

(d)  Historia  Dyzanlina  dtiplici  commentario  illustrata. . .  Au- 
ctore  Cario  du  Fresne  Domino  du  Canqe — Venetiis,  1729,  pag. 
190. 

{e)  Vide  Nicephori  Gregoro'  Bomana^,  hoc  est  Byzantina;  His- 
ioricv  lihri  XI.  • .  (Luletíse,  ISCô)  fl.  13. 


23 


tectora  desvelada.  A  mesma  D.  Isabel,  quando  veiu 
para  Portugal  para  casar  com  el-rei  D.  Diniz  (1282), 
a  trouxe  em  sua  companhia  como  sua  dama,  e  pos- 
teriormente a  fez  aia  de  seu  filho,  o  infante  D.  Af- 
fonso,  que  depois  foi  rei,  o  quarto  d'esto  nome.  D. 
Vetaça  criou  D.  Constança,  filha  do  mesmo  D.  Af- 
fonso,  como  aia;  acompanhou-a  como  camareira  mór 
ao  reino  de  Castella,  onde  a  serviu  por  algum  tem- 
po; e  ahi  criou  também  sua  filha,  a  infanta  D.  Leo- 
nor. El-rei  D.  Fernando  iv  do  Castella  lhe  doou  a 
villa  de  Padrassa  em  20  de  fevereiro  de  1311,  e  no 
padrão  da  doação  dizia  fazer-lho  esta  mercê  jpor  la 
cvianza  que  jizo  en  la  Reina  Dona  Constança  mi 
mucjeVy  y  en  la  infanta  Dona  Leonor  nuestra  Jija(a). 
Esta  rainha  D.  Constança,  pouco  antes  de  morrer  em 
Sahagun,  a  fez  tutora  de  seus  filhos  D.  Pedro  e  D.  João. 
Regressando  a  Portugal,  veiu  D.  Vetaça  residir  na 
cidade  de  Coimbra.  A  rainha  Santa  Isabel  no  seu 
segundo  testamento  (ò),  a  nomeou  entre  os  seus  tes- 
tamenteiros e  lhe  destinou  um  legado  de  cem  marcos 
do  prata.  D.  Vetaça  casou  em  Portugal  com  Martim 
Annes,  dos  de  Soverosa,  fidalgo  muito  illustre.  Por 
seu  testamento,  feito  em  21  de  abril  de  1336,  deixou 
D.  Vetaça  ao  cabido  da  sé  de  Coimbra  a  maior  parte 
de  seus  avultados  bens. 

O  tumulo  em  que  jazem  os  restos  desta  nobre  se- 
nhora tem  na  parte  superior  uma  estatua  de  gros- 
seiro lavor,  que  a  representa  com  hábitos  religio- 
sos (c),  a  cabeça  sobre  uma  almofada  sustentada  por 
dois  anjos  o  aos  pés  dois  rafeiros.  Na  face  anterior 

(a)  Monarchia  Lusitana,  liv.  17.",  cap.  40." 

(6)  Memorias  das  Rainhas  de  Portugal,  por  F.  F.  de  la  Figa- 
nière. 

(c)  Talvez  por  ter  sido  irmã  da  ordem  de  S.  Francisco.  Vide 
Historia  Seráfica,  por  fr.  Manuel  da  Esperança,  P.  2.*,  pag.  270, 
e  lambem  Jardim  de  Portugal,  por  fr.  Luiz  dos  Anjos. 


24 


do  moimento,  única  patente,  veem-se  entre  vários 
ornatos  três  águias  em  relevo,  cada  uma  com  duas 
cabeças.  A  águia  assim  representada  symbolisa  a 
divisão  do  Império  em  oriental  e  occidental,  o  era 
a  insígnia  dos  imperadores.  Descendendo  D.  Vetaça 
da  casa  imperial  da  Grécia,  bem  cabido  é  no  seu  tu- 
mulo este  brasão  ou  emblema. 

Segundo  Goellio  Gasco,  havia  no  tumulo  esta  le- 
genda: 

AQUI  JAZ  DONA  BATAÇA,  NETA  DO  IMPERADOR  DA    GRÉCIA  (ã). 

A  capella  mór  e  as  duas  que  lhe  ficam  aos  lados 
— a  de  S.  Pedro  e  a  do  Santissimo,  todas  encerram 
trabalhos  artisticos  de  grande  merecimento. 

O  retábulo  de  pedra  da  capella  de  S.  Pedro,  em 
cuja  parte  principal  se  vê  representado  o  martyrio 
d'este  santo,  é  de  excellente  esculptura,  correcta  e 
elegantemente  trabalhado  no  estylo  do  renascimento; 
e  quiçá  se  deve  attribuir  ao  mesmo  delicado  escopro 
que  lavrou  as  portas  lateraes  da  egreja.  Como  ellas, 
foi  mandado  fazer  pelo  bispo  D.  Jorge  d'Almeida,  o 
qual  jaz  sepultado  nesta  capella  sob  uma  campa  de 
mármore,  que  tem  gravado  este  epitaphio: 

DIVINI  .  NOMINIS  . 
PIETATE  .  EPISCOPVS  . 

COMES.  GEORGIVS 

DALMEIDA.  HIC.  SITVS 

VIXIT.  ANNIS.  LXXXV 

OBIIT.  VIII  KLS.  SEX  TILES. 

ANN.  D.  M.  D.  XXXXIII 

ANNIS  .  LXII  VTRAQZ 
DIGMTATE  .  PR^DITVS 

(a)  Noticias  minuciosa?  de  D.  Vetara  cncontram-se  ainda  no 
Ponoraiva  de  4842,  pag.  122;  nos  AiiJines  do  Mvnicipio  de  Sanf 
lago  de  Cocem,  pelo  sr.  António  de  Macedo  e  Silva  (dos  quaes  tia 
já  dua8  edições);  na  Collecçúo  dos  Documentos  e  Mem.  da  Acade^ 


25 


Na  mesma  campa^  que  é  orlada  de  uma  formosa 
tarja,  está  esculpido  o  brasão  do  illustre  bispo  —  es- 
cudo esquartelado,  tendo  no  primeiro  e  quarto  cam- 
po, de  vermelho,  uma  cruz  doble  entre  seis  besantes 
de  ouro;  no  segundo  e  terceiro  campo,  de  prata,  leão 
de  purpura. 

D.  Jorge  de  Almeida,  filho  do  primeiro  conde  de 
Abrantes  D.  Lopo  de  Almeida,  e  irmão  do  grande 
vice-rei  da  índia  D.  Francisco  de  Almeida,  foi  o  38.* 
dos  bispos  de  Coimbra  depois  que  D.  Fernando  Magno 
conquistou  aos  mouros  esta  cidade.  No  conclave  que 
em  seu  tempo  se  celebrou  em  Roma,  recahiram  em 
D.  Jorge  muitos  votos  para  supremo  pastor  da  egre- 
ja  (a).  Foi  um  dos  prelados  que  o  summo  pontifico 
Paulo  III  nomeou  inquisidores-móres  d'este  reino  pela 
bulia  Venerabilibus  fratribus  Colimbriensi,  et  Lame* 
cenci,  ac  Ceptensi  Episcopis  de  23  de  maio  de  1536  (6). 
Quando  el-rei  D.  João  ii  foi  com  o  príncipe  D.  Af- 
fonso  a  Extremoz  no  anno  de  1490  para  conduzir  a 
princeza  D.  Isabel,  foi  D.  Jorge  de  Almeida  em  com- 
panhia do  monarcha;  e  também  lhe  assistiu  nos  seus 
últimos  momentos  (c).  No  anno  de  1512  baptizou  em 
Lisboa  o  infante  D.  Henrique,  que  depois  foi  cardeal 
e  rei  (d).  Falleceu  D.  Jorge  de  Almeida  no  dia  25 
de  julho  de  1543  com  85  annos  de  edade,  havendo 


mia  Real  de  Hist.,  t.  4.»,  conferencia  de  31  de  julho  de  1721;  e 
nos  Anales  de  la  Corona  de  Aragorij  por  Geronyno  Çurita,  t.  1.» 
in  fine;  etc. 

(a)  Agiologio  Lusitano,  tomo  iv,  commentario  ao  dia  25  de 
julho,  letra  C. 

(6)  Catalogo  dos  Inquisidores  de  Coimbraj  na  Collecção  dos  Do- 
cumentos e  Memorias  da  Academia  Real  de  Historia  do  anno  de 
1723. 

(c)  Chronica  de  D.  João  II,  por  Garcia  de  Rezende,  cap.  121. 

{d}  Europa  Portugueza,  por  Faria  e  Sousa,  tomo  2.%  parle  4.% 
cap.  I.»,  pag.  529. 


2G 


governado  a  sua  diocese  pelo  dilatado  espaço  do  GO 
ou  62. 

O  bispo  D.  Jorge  tomou  a  peito  a  meritória  em- 
presa de  ornar  esplendidamente  a  sua  sé,  o  foi  por 
isso  que  mandou  pôr  no  arco  cruzeiro  esta  legenda 
tirada  dos  Psalmos,  cap.  2õ,  v.  8:  Domine,  dilexi 
decorem  domus  tiice  (a). 

Nas  alfaias  o  obras  sumptuosas  com  que  dotou  e 
ennobreceu  a  cathedral,  executadas  quando  as  bellas 
artes  em  o  nosso  paiz  chegavam  a  notável  grau  do 
florescência  e  esplendor,  encontra-se  o  que  nesta  ci- 
dade ha  do  mais  delicado  em  esculptura  em  pedra  e 
madeira  e  no  trabalho  do  ourivesaria,  tanto  no  es- 
tylo  gothico  o  manoelino,  como  no  clássico  do  renas- 
cimento. 

Entre  essas  bellezas  artísticas  distingue-se  singu- 
larmente o  famoso  retábulo  de  talha  da  capella  mór, 
obrado  ao  findar  o  século  xv  ou  nos  principies  do 
XVI.  E'  elle  na  verdade  um  trabalho  de  apuradissimo 
gosto.  Graves  e  auctorisados  escriptores  lhe  têm  pro- 
digalisado  os  maiores  elogios,  celebrando  justamente 
a  sua  belleza.  Gasco  diz  ser  este  retábulo  o  mais  cu- 
rioso e  subtil  que  se  sabe  haver  em  Hespanha  (ò); 
o  conde  Raczynski  o  considera  do  mais  puro  estylo 
gothico  (c);  Garrett  disse  que  é  o  mais  tino  e  per- 
feito e  delicado  lavor  gothico  em  talha  de  que  tinha 
noticia  e  talvez  que  exista  (cZ);  e  o  sr.  Vilhena  Bar- 
bosa classifica-o  entre  as  obras  que  revelam  a  um 
tempo  na  prodigiosa  variedade  de  desenhos  uma  ima- 
ginação viva  e  fecunda,  na  perfeição  do  trabalho 
aquelle   estudo  e  esmero   que   só   podem  nascer  do 

(a)  Historia  Breve  de  Coimbra,  por  Bernardo  de  Brito  Bote- 
lho. 

(6)  Conquista,  antiguidade  e  nobreza  . .  de  Coimbra,  cap.  xxii. 

(c)  Les  Arts  en  Portugal. 

(d)  Obras,  Lyrica,  loino  xvi  da  3.«  edição,  pag.  22. 


27 


amor  pela  arto,  o  finalmente,  na  concepção  de  tan- 
tos primores  esse  gosto  apurado  que  caracterisa  em 
qualquer  nação  a  florescência  das  artes  (a). 

A  parte  central  do  retábulo  é  occupada  por  um 
interessante  grupo  do  figuras  de  vulto,  em  que  se 
representa  a  Assumpção  da  Virgem,  Além  d'este  gru- 
po distinguem-se  ainda  grande  numero  de  estatuetas 
de  vários  tamanhos  em  formosos  nichos,  entre  as 
quaes  se  tornam  mais  notáveis  as  de  dois  evangellis- 
tas.  Um  d'elles,  sentado  em  rica  e  vistosa  cadeira, 
revestido  de  roupagens  habilmente  panejadas,  está  es- 
crevendo num  livro  e  tem  juncto  de  si,  em  attitudo 
de  lhe  ministrar  a  tinta,  ura  formoso  mancebo  de  ricos 
trajos  e  longa  cabelleira  solta.  Tudo  o  mais  de  que 
se  compõe  o  retábulo  merece  minucioso  exame.  A 
parte  ornamental  é  profusa  e  delicadíssima,  deixando 
enthusiasticamento  enlevados  quantos  observam  esta 
obra  prima  de  esculptura,  que  temos  por  singular  no 
paiz.  Não  devem  escapar  ao  exame  do  observador 
algumas  engraçadas  figuras  do  género  grotesco,  que 
por  vários  pontos  se  descobrem. 

As  paredes  lateraes  da  capella  mór  e  a  sua  abo- 
bada acham-se  também  revestidas  de  obra  de  talha, 
a  qual  pelos  seus  lavores  mais  carregados,  mas  ainda 
assim  dignos  de  apreço,  indica  ser  posterior  ao  retá- 
bulo cerca  de  dois  séculos. 

Juncto  dos  degraus  da  capella  mór  vê-se  uma  la- 
pide sepulchral  que  se  torna  notável  por  haver  sido  pi- 
cado o  brasão  que  tem  insculpido — escudo  oval  orlado 
pelo  letreiro  bispo  Conde  e  atravessado  por  cinco 
faixas  ondeadas  de  agua  e  tendo  na  do  meio  um  delfim 
nadante.  Era  o  brasão  do  bispo  D.  Joanne  Mendes  de 
Távora,  que  ali  jaz^  antepassado  da  familía  Távora, 
que  ficou  implicada  na  tentativa  de  assassinato  con- 

(a)  Panorama  de  1855,  pag.  386. 


28 


tra  el-roi  D.  José  em  a  noute  de  3  de  setembro  de 
1758.  O  brasão,  por  pertencer  a  pessoa  d'este  appel- 
lido,  foi  picado  om  virtude  de  uma  das  disposições 
da  terrivel  sentença  condemnatoria  dos  réus  d'aquelle 
attentado,  proferida  pela  suprema  juncta  da  Inconfi- 
dência em  12  de  janeiro  de  1759. 

A  capella  do  Santissimo  é  apreciável  pela  sua  forma 
e  pelo  esmero  e  bom  effeito  das  esculpturas  em  pedra 
que  a  adornara.  Com  razão  diz  fr.  Agostinho  de  Santa 
Maria  que  esta  capella  é  de  galante  e  excellente 
architectura  e  tudo  quanto  nella  se  vê  preciosamente 
obrado  (a).  E'  quasi  circular  e  guarnecem-n-a  duas 
ordens  de  nichos,  nos  quaes  estão  as  estatuas,  quasi 
de  tamanho  natui*al,  de  Christo,  dos  doze  apóstolos  e 
outras  sinzeladas  com  notável  correcção  (b).  A  abo- 
bada^ formando  uma  cúpula  'hemispherica,  também 
se  ostenta  elegante  e  aprimorada  pelos  seus  medalhões 
6  outros  delicados  lavores.  Nella  se  vê  esculpida  a 
data  de  1566. 

Mandou  construir  esta  capella  o  bispo  D.  João 
Soares,  que  governou  o  bispado  desde  1545  até  1572. 
Fora  confessor  d'el-rei  D.  João  iii,  seu  pregador,  es- 
moler e  mestre  de  seus  filhos  D.  Filippe  e  D.  João. 
Sendo  deputado  do  Santo  Ofíicio,  foi  assumpto  á  mi- 
tra de  Coimbra  em  22  de  maio  de  1545.  Conduziu 
com  grande  apparato  da  cidade  de  Badajoz  á  de 
Lisboa  a  princeza  D.  Joanna  d'Austria,  filha  de  Car- 
los V,  quando  V3Íu  a  desposar-se  com  o  principe  D. 
João.   Foi  um  dos  prelados  que  el-rei  D.  Sebastião 

(a)  Santuário  Mariano,  vol.  4.°. 

(6)  Também  estava  (l'antes  nesta  capella,  e  hoje  conserva-se 
em  sitio  mais  recôndito,  uma  imagem  dft  Nossa  Senhora  com  o 
ventre  consideravelmente  volumoso;  da  qual  dá  uma  curiosa  no- 
ticia fr.  Agostinho  de  Santa  Maria  no  Santuário  Mariano,  t. 
4.*,  pag.  373.  Na  mesma  obra  e  t.  pag.  616  vem  também  noticia 
de  outra  imagem  de  Nossa  Senhora,  que  o  bispo  D.  João  de  Mello 
mandou  fazer. 


29 


mandou  ao  concilio  tridentino,  e  neste  sagrado  con- 
gresso se  distinguiu  muito  por  sua  eloquência  e  pro- 
fundos conhecimentos.  Concluído  o  concilio,  visitou 
os  logares  santos  de  Jerusalém,  onde  deixou  ao  tem- 
plo do  Santo  Sepulchro  um  precioso  ornamento.  D. 
ir.  João  Soares  jaz  na  capella  do  Sanctissimo,  ou 
próximo  d'ella,  sob  uma  campa  rasa.  Nenhum  bra- 
zão,  ou  epitaphio,  nos  indica  o  logar  da  sua  sepul- 
tura, ou  porque  ella  os  não  teve,  ou  porque  se  des- 
gastaram (a). 

Outro  objecto  recommendavel  que  existe  no  cru- 
zeiro é  o  tumulo  do  bispo  D.  Tiburcio,  situado  do 
lado  da  epistola,  sob  um  arco  aberto  na  parede.  Nelle 
se  vê  em  relevo,  mas  já  bastante  desgastada  pelo  ro- 
çar de  seis  séculos,  a  figura  do  bispo,  paramentado  de 
pontifical,  e  com  as  mãos  sobre  o  peito.  O  prelado, 
cujas  cinzas  encerra  este  monumento,  é  de  grande  ce- 
lebridade na  historia  pelo  muito  que  figurou  na  con- 
tenda da  desthronisação  de  D.  Sancho  II.  Foi  D.  Ti- 
burcio quem  apresentou  ao  papa  Innocencio  IV,  por 
occasião  do  concilio  celebrado  em  Leão  no  anno  do 
1245,  as  representações,  informações  e  documentos, 
tendentes  a  alcançar-se  que  o  papa  privasse  aquelle 
monarcha  do  governo  do  reino,  e  lhe  substituísse  seu 
irmão  o  conde  do  Bolonha.  Este  proceder  de  D.  Ti- 
burcio acarretou-lhe  os  ódios  de  D.  Sancho  e  de  seus 
partidários,  pelo  que  o  prelado  desleal  teve  de  soffrer 
não  pequenos  trabalhos  e  privações  (6). 

Próximo  do  tumulo  do  bispo  D.  Tiburcio  fica  a 
porta  da  sacristia,   casa  de  boa  fabrica,   espaçosa, 

(a)  Mais  largas  noticias  de  D.  fr.  João  Soares  encontram-se  na 
Biblioth.  Líisit.  por  Barbosa;  nas  Mem.  para  a  Hist.  de  D.  Sebas- 
tião, pelo  mesmo,  t.  3.»,  pag.  465;  na  Vida  de  D.  Fr.  Bartholo- 
meu  dos  Martyres,  por  Sousa,  liv.  2.»,  cap.  17.*;  no  Dicc.  Bibliogr,, 
peio  sr.  I.  F.  da  Silva;  etc. 

(&)  Vide  Noticia  Hist.  do  Mosteiro  da  Vacariça,  por  Vascon- 
cellos,  continuação  da  2."  parte. 


30 


com  abobada  de  pedra  lindamente  lavrada,  e  uma 
vistosa  fonte  de  mármores.  Deve-se  a  fabrica  da  sa- 
cristia ao  bispo  D.  Aífonso  de  Castello  Branco,  que 
nesta  obra,  na  do  coro,  e  em  outras  que  fez  na  sé 
gastou  noventa  e  sete  mil  cruzados  (a). 

A's  excellencias,  primores  e  bellezas  doeste  templo, 
e  á  memoria  de  illustres  personagens,  cujos  túmulos 
alli  se  encontram  (6),  accrescem  ainda  para  tornar 
mais  celebre  e  valioso  este  monumento  os  notáveis 
successos  que  com  elle  têm  ligação. 

Aquelle  que  aprecia  as  tradições  da  historia  pátria, 
visitando  a  sé  velha  e  evocando  á  memoria  os  im- 
portantes factos  succedidos  no  sou  recinto^  achará,  por 
certo,  motivos  para  muitas  e  mui  graves  recorda- 
ções. 

Neste  sumptuoso  templo  foram  coroados  pelo  bispo 
D.  Martinho  com  solemne  pompa  e  apparato,  no  dia 
9  de  dezembro  de  118Õ,  el-rei  D.  Sancho  i  e  a  rainha 
sua  mulher  (c). 

Alli  se  celebrou  pela  primeira  vez  em  Portugal, 

(a)  Assim  se  diz  num  manuscripto  intitulado  Vida  e  morte  do 
heroe  D.  Affonso  de  Castello  Branco,  obra  de  João  d'Almeida  Soares 
e  existente  na  bibliotheca  de  Évora.  Acerca  d'este  manuscripto 
veja-se  no  Conimbricense  n."  1001  um  artigo  do  sr.  dr.  A.  Filippe 
Simões. 

{b)  Além  daquellas  de  que  jcá  falíamos  existem  na  sé  velha  ou- 
tras muitas  sepulturas  notáveis^  de  que  seria  longo  tractar.  O  chão 
do  templo  é  lageado  em  grande  parte  por  lapides  sepulcraes,  car- 
regadas debrazões  e  epitaphios.  Muitas  d'estas  paginas  de  pedra, 
que  porventura  fatiavam  de  nomes  gloriosos,  bemquistos  de  Deus 
e  respeitados  dos  homens,  já  não  se  podem  decifrar,  pois  que  os 
pés  dos  vivos  as  tôm  apagado  quasi  ue  todo. 

No  Catalogo  dos  Bispos  de  Coimbra  por  Ferreira,  na  Conquista... 
de  Coimbra,  ])or  Gasco,  cap.  20.»,  \m  Noticia  Hist.  do  Mosteiro  da 
Vacariça,  por  Vasconcellos,  p.  2.''  e  em  um  artigo  do  sr.  A.  M. 
Seabra  d'Albuquerque,  inserto  na  Estréa  Litteraria  n.°  9,  encon- 
Iram-se  noticias  de  muitas  pessoas  qne  jazem  na  sé  velha. 

(c)  Vide  Mon.  Lusit.,  P.  4,  cap.  i. 


31 


era  tempo  de  el-rei  D'.  Diniz  e  por  industria  do  bispo 
D.  Raymundo,  a  festa  da  Conceição  Immaculada  de 
Nossa  Senhora,  que  depois  se  estendeu  ás  outras  ca- 
thedraes  do  reino  (a). 

Alli,  no  anno  de  1361,  se  leu,  por  ordem  de  el-roi 
D.  Pedro  i,  o  instrumento  da  declaração  jurada,  que 
fizera  em  Cantanhede  em  presença  de  vários  prela- 
dos e  grandes  do  reino^  de  que  a  formosa  D.  Ignez 
de  Castro  fora  sua  legitima  e  verdadeira  esposa  (6). 

Alli,  no  dia  3  do  março  de  1385,  quando  veiu  para 
assistir  ás  cortes  que  três  dias  depois  lhe  deram  a 
coroa,  foi  receLido  com  honras  de  monarcha  o  mestre 
de  Aviz,  que  depois  se  appeUidou  el-rei  D.  João  i  (c). 

Alli,  no  dia  G  de  maio  do  1449,  foi  encommendar- 
se,  em  suas  angustias,  á  Consoladora  dos  aíflictos,  o 
infeliz  duque  de  Coimbra,  D.  Pedro,  que  fora  as  de- 
licias da  pátria^  e  que  poucos  dias  depois,  victima 
de  mal  fundados  ódios  e  mesquinhas  intrigas,  pereceu 
nos  infames  plainos  de  Alfarrobeira  (d), 

Alli,  no  dia  13  de  outubro  de  1Õ70,  depois  de  ter 
ouvido  á  porta  da  ponte  a  brilhante  allocuçao  que  em 
nome  da  cidade  lho  dirigiu  Jorge  do  Sá  Soutto  Maior, 
foi  fazer  sua  oração  ao  Omnipotente,  o  valoroso  e  in- 
feliz D.  Sebastião,  indo  depois  hospedar-se  no  paço 
episcopal  (é). 

(a)  Vide  Mon.  LusiL  P.  6.%  liv.  19.^  cap.  22. 

(6)  Vide  Chron.  dos  Coneg.  Regr.,  P.  2.%  liv.  9.»,  cap.  22, 
pag.  242. 

(f)  Vide  Memorias  de  D.  João  1  por  José  Soares  da  Silva,  liv. 
1.0,  cap.  43. 

(d)  Vide  Chron.  de  D.  Áffonso  V,  por  Ruy  de  Pina  {Inéditos 
de  Hist.  Portugueza)  cap.  117. 

(e)  Vide  Portugal  Cuidadoso,  por  Bayão,  pag.  170. 


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